A HORA
DA INDÚSTRIA
ANTES ACOSTUMADA A UM RELACIONAMENTO EXCLUSIVO COM O VAREJO, A INDÚSTRIA ESTÁ SE REINVENTANDO E SE MOSTRA CADA VEZ MAIS DISPOSTA A ESTABELECER UM RELACIONAMENTO DIRETO COM O CONSUMIDOR
POR IVAN VENTURA
Em mais de 110 anos de existência, a Kellogg’s jamais se preocupou em montar uma loja própria para vender os seus famosos cereais matinais diretamente para o consumidor. Essa sempre foi uma preocupação de varejistas pequenos, médios ou grandes, como é o caso do Walmart. Mas isso começou a mudar em dezembro do ano passado, quando a empresa dos sucrilhos abriu a primeira loja física em Nova York. Vender é apenas um dos verbos conjugados no espaço. Com mais de 470 metros quadrados, a loja da Kellogg’s tem desde uma lúdica e colorida cafeteria e uma loja de brindes, com produtos da marca, a um salão de festas com aluguéis a partir de US$ 1.000. Mais do que isso, o espaço tem sido usado para encontros entre chefs e consumidores que, juntos, produzem diferentes iguarias a partir dos cereais produzidos pela marca.
A Unilever também adotou um caminho parecido. Este ano, a marca montou uma loja temporária chamada Bar St. Ives Mixing no SoHo, um dos mais descolados bairros de Nova York. O espaço já fechou as portas, mas quem o visitou pôde produzir o próprio esfoliante facial ou loção corporal a partir dos diversos ingredientes espalhados no espaço. Assim como as duas marcas americanas, há outros exemplos de indústrias que lançaram a sua própria loja física; caso da Bauducco, da Nespresso, da Nestlé e da Coca-Cola. No entanto, mais do que uma simples empreitada, o que parece estar em jogo é uma transformação sem precedente desse setor, e que pode redefinir ou pôr um ponto final na velha classificação econômica da indústria como primeiro setor.
O fato é que há tempos a indústria abandonou a aparência antiquada e se distancia cada vez mais da célebre frase de Henry Ford: “O cliente pode ter o carro da cor que quiser, contanto que seja preto”. Isso mudou. Hoje, a indústria entende que o cliente não só tem o poder de escolha, como valoriza a personalização. Entendeu ainda que, diante de hábitos cada vez mais digitais, ele faz questão de comodidade. E tem pressa. O problema é que quando o varejista não está alinhado aos desejos do consumidor, isso pode ter reflexos negativos também para a indústria. A grande sacada do setor primário foi, então, se aproximar do público final a fim não só de conhecê-lo, como acompanhar as suas mudanças, algo que a gigante americana Amazon, por exemplo, faz com maestria. A estratégia vem dando certo.
De acordo com um levantamento da consultoria Euromonitor, o e‑commerce global deve movimentar mais de US$ 3 trilhões em 2021. Hoje, esse montante seria de aproximadamente US$ 1 trilhão. “Pelo modelo tradicional, a indústria fornece produto para o varejo que, por sua vez, vende para o consumidor final. Mas o que acontece se tivermos um novo player que atue diretamente com o consumidor, caso da Tencent ou Amazon? Hoje, essas empresas utilizam inteligência artificial e analisam muitos dados digitais, o que dá a elas um conhecimento sobre os clientes superior aos players tradicionais. Essa é uma das vantagens de contar com essas empresas como parceiras”, afirma John G. Maxwell, líder global do mercado de consumo da consultoria PwC.





NEGÓCIO DA CHINA
O exemplo mais recente desse tipo de parceria foi feito no início de novembro deste ano e teve como protagonista o Alibaba. Na ocasião, a companhia chinesa anunciou o compromisso de importar US$ 200 bilhões em mercadorias para mais de 120 países pelos próximos cinco anos. E o que isso tem a ver com a indústria? Os três principais parceiros da gigante asiática são, justamente, algumas das indústrias mais poderosas do mundo: a americana P&G, a suíça Nestlé e a brasileira JBS. Considerada uma das maiores exportadoras globais de proteína animal, a JBS tem como objetivo vender as carnes bovina, de frango ou suína pela internet. O negócio, inclusive, já é apontado como o maior contrato de proteína animal nas relações comerciais entre Brasil e China, com expectativa de movimentar US$ 1,5 bilhão em três anos. “A assinatura do acordo expandirá significativamente os nossos negócios de carne bovina e irá gerar ainda mais valor à marca Friboi, que lançamos na China faz pouco tempo. Nossas marcas possuem rastreabilidade e um processo sustentável de produção, uma questão cada vez mais relevante para o consumidor final”, destaca Renato Costa, presidente da JBS Carnes Brasil.

“PELO MODELO TRADICIONAL, A INDÚSTRIA FORNECE PRODUTO PARA O VAREJO QUE, POR SUA VEZ, VENDE PARA O CONSUMIDOR FINAL. MAS O QUE ACONTECE SE TIVERMOS UM NOVO PLAYER QUE ATUE DIRETAMENTE COM O CONSUMIDOR, CASO DA TENCENT OU AMAZON?”
JOHN G. MAXWELL, LÍDER GLOBAL DO MERCADO DE CONSUMO DA CONSULTORIA PWC
No entanto, o sucesso dos novos entrantes digitais com o consumidor é apenas um dos motivos para essa mudança da indústria. A aproximação com o cliente ou mesmo a decisão de montar uma loja física, mesmo que temporária, faz da indústria mais um competidor do segundo setor. Ou seja, ao mesmo tempo em que ela é fornecedora, ela se torna concorrente. Esse movimento entre o primeiro e o segundo setor foi notado em outro levantamento, desta vez feito pela consultoria digital CB Insights. O estudo analisou a indústria de bens não duráveis (alimentos e bebidas) ao redor do mundo e, por conta da expansão das marcas próprias, chegou à seguinte conclusão: “As marcas precisam confiar menos nos varejistas, que estão se tornando concorrentes e não parceiros”.
Na prática, isso significa que a indústria também é varejo, e vice-versa. Segundo um estudo recente da Nielsen, o movimento do varejo rumo à marca própria não só está ocorrendo como cresce em uma proporção percentual superior à indústria tradicional. No ano passado, o número de produtos de marcas próprias disponíveis no mercado cresceu 13,4%. O mesmo levantamento mostrou que a entrada de novos produtos da indústria cresceu um pouco menos: 9% no ano passado.
Dez anos depois do lançamento de Qualitá, o Grupo GPA anunciou, recentemente, uma meta ousada: fazer com que os produtos de marca própria caiam no gosto dos consumidores brasileiros – e não mais por uma necessidade de poupar, mas sim por uma questão de escolha. Por aqui, esses itens representam, em média, 5% das vendas nos supermercados, um cenário bem diferente dos Estados Unidos, onde a fatia é de 21%, e da Europa, que registra uma média de 41%. “Não queremos mais ser uma opção para os dias ruins, mas sim a primeira opção, seja para o cliente das classes A e B, seja para o cliente das classes C e D”, diz o alemão Wilhelm Kauth, diretor de Marcas Exclusivas do GPA. Há um ano no Grupo, o executivo assumiu o desafio de ajudar a reposicionar a marca Qualitá no mercado e a evoluir o conceito de marca própria no País.
Ele se refere ao sucesso de marcas próprias como é o caso da Target, que lançou recentemente a Made By Design, de móveis para a casa, e a Smartly, marca de cuidados domésticos de baixo custo. O Walmart, por sua vez, lançou uma marca de vinhos e outra de vestuários: a Eloquii, da D2C.

ORÇAMENTO DIGITAL
O desafio da indústria para se aproximar do consumidor tem percalços ainda mais espinhosos. Talvez um dos mais delicados seja que o novo entrante digital também poderá ser um concorrente de peso em pouco tempo – e talvez o mais letal dentre todos os demais setores. Segundo Maxwell, da PwC, essas empresas possuem o que ele define como “cyber capital”, uma espécie de orçamento fundamentalmente digital. “Negócios tradicionais têm um orçamento baseado em um modelo antigo: eles têm áreas de recursos humanos, pessoas exercendo a função administrativa e apenas uma pequena porção de budget para a transformação digital. Empresas digitais têm uma estrutura diferente e, mais do que isso, um valor maior de cyber capital”, afirma.
O estudo da CB Insight sobre a indústria de bens de consumo não duráveis também analisou o orçamento tecnológico dessas empresas. Hoje, a Amazon hospeda um produto e, uma vez vendido, repassa a maior parte do valor dele à indústria. No entanto, a empresa de Seattle retém uma informação mais valiosa do que a própria venda: o big data com os hábitos do cliente da indústria. “As empresas de tecnologia estão controlando os pontos de venda on-line e off-line (caso da Amazon), interceptando os dados dos compradores e gerenciando as relações com os clientes. Elas estão forçando as marcas de bens de consumo não duráveis a repensar suas estratégias de marketing e reagir às novas tendências”, afirma o estudo.
“AS MARCAS PRECISAM CONFIAR MENOS NOS VAREJISTAS, QUE ESTÃO SE TORNANDO CONCORRENTES E NÃO PARCEIROS”
CB INSIGHTS

PACOTE DE DADOS
A resposta de algumas indústrias tem sido praticamente na mesma moeda. Muitas delas desenvolveram o próprio e‑commerce e, assim, passaram a capturar e controlar os dados dos seus consumidores. Em 2015, a Ambev criou o chamado Zé Delivery, uma plataforma digital que une consumidores e donos do depósito com um único objetivo: levar cerveja gelada para a comodidade do lar do cliente. Deu certo. Aliás, a coleta de insumos digitais faz parte da estratégia de outra marca da Ambev: a Brahma. No início de outubro, a marca lançou uma campanha publicitária cujo mote é o diálogo aberto com o cliente nas redes sociais. “Nossos especialistas respondem a perguntas sobre ingredientes, fases da fabricação e qualidade das cervejas”, afirma Rodolfo Carvalho head de marketing da Brahma. O objetivo, claro, é não só se relacionar com o cliente como entender seus hábitos de consumo.
A Coca-Cola é outra indústria que, por meio da loja virtual, coleta dados digitais, mas por trás dessa iniciativa ela tem ainda outro objetivo: responder a dúvidas que vão das mais simples às mais capciosas; caso do uso de ingredientes secretos ou proibidos – o que não passa de mito, segundo a companhia. Esse tipo de interação também vem mudando a rotina da indústria. Afinal, ao mesmo tempo em que a internet ajuda a elucidar algumas dúvidas, também dissemina informações (verdadeiras e falsas) sobre a conduta dessas empresas.
Essa é uma das preocupações da Tate & Lyle, empresa britânica responsável pela produção de insumos para a indústria de alimentos. Um dos seus ingredientes mais famosos é o stevia, um conhecido substituto do açúcar presente em adoçantes. A empresa tem defendido um movimento de simplificação das informações contidas nos rótulos e a diminuição da quantidade de ingredientes nos produtos industrializados. “O consumidor quer produtos saudáveis e tem pressionado a indústria a oferecer produtos com menos açúcar e sódio. Hoje, existe uma tendência pelo uso de ingrediente de base vegetal ou natural, mas sem abrir mão do gosto ou da textura. Esse é o grande desafio da indústria”, afirma Oswaldo Nardinelli, general manager da Tate & Lyle para a América Latina.



A Coca-Cola talvez seja o maior exemplo dessa mudança de rótulo com base no desejo do consumidor. Foi em 1982 que a empresa lançou o Diet Coke, um produto com uma quantidade menor de açúcar. Desde então, a empresa tem-se dedicado a aumentar a família dos produtos menos adocicados. Entre 2014 e 2017, ela lançou 40 bebidas com receitas modificadas no mercado, sendo 15 delas apenas no primeiro semestre do ano passado. Agora, a empresa afirma ter inaugurado uma nova categoria de bebida, com gás, como nos refrigerantes, mas também frutas naturais, como em um suco. “Por estar em linha com as demandas do consumidor moderno, acreditamos ter um grande potencial de desenvolvimento”, afirma Renato Shiratsu, diretor de inovação da Coca-Cola Brasil.
No caso da BASF, dona da Suvinil, essa proximidade com o consumidor é relativamente recente, muito embora ela não seja nova. Mas a sua mais nova aposta nada tem a ver com tintas. Trata-se da melancia Pingo Doce, o primeiro alimento da empresa. Com um sistema de produção orientado a produzir o sabor ideal para o consumidor, a fruta é menor, mais suculenta e tem poucas sementes. “A nossa ideia é empoderar o consumidor, mostrando a ele todo o mecanismo de produção, desde o manejo e a polinização de abelhas ao uso de defensivos no momento adequado”, enfatiza Paulo Tomaseto, diretor-comercial da Nunhems, a subsidiária de agronegócio da BASF. O teste do sistema já começou e, caso dê certo, o modelo Pingo Doce poderá ser replicado para outros alimentos; caso do tomate. O fato é que o consumidor é quem dará a palavra final.
IDEIAS E INSIGHTS
Confira, a seguir, as tendências da indústria para os próximos anos
1. INTEGRAÇÃO VERTICAL
Existe uma expectativa de que a indústria assuma o controle de toda a cadeia de consumo: da produção até o consumo final
2. NOVOS LOCAIS DE VENDA
A ideia é que a indústria pense em novos locais de venda de seus produtos. A rede de academias Equinox, por exemplo, fez uma parceria com a marca premium de produtos de higiene pessoal Kiehl’s. Já a Emirates fechou um acordo com a Plenty, startup de produtos hortifrutigranjeiros, para fornecer vegetais frescos nas salas de espera e nas refeições a bordo
3. APOSTA NO BEM-ESTAR
A indústria tem apostado não apenas em produtos, mas em iniciativas que promovam o bem-estar. É o caso das americanas Dirty Lemon, Rebbl e Tula, marcas que têm adicionado ingredientes benéficos aos produtos, como colágeno, ginseng e probióticos
4. PERSONALIZAÇÃO
A personalização é uma tendência que impacta qualquer negócio, inclusive a indústria. Um exemplo é a Function of Beauty, líder nos Estados Unidos de cuidados customizados para cabelos. Eles distribuem xampus e condicionadores individualizados em garrafas com base na avaliação on-line de cada comprador
Fonte: CB Insights
Vida para a Johnson & Johnson que, para facilitar a experiência de compra das famílias Millennials, principais shoppers da categoria, modernizou a marca e reduziu em quase 50% o número de ingredientes das formulações, agora com 90% de origem natural. “Essa evolução é muito importante para nós e estabelece novos padrões de pureza no mercado. Como ela é resultado de uma cocriação global, estamos certos de que estamos atendendo aos anseios de uma nova geração de mães e pais, que demandam produtos mais naturais, práticos e com informações detalhadas no rótulo sobre ingredientes”, afirma José Cirilo, diretor de marketing da Johnson & Johnson Consumo do Brasil.
Ao que tudo indica, o espaço que vem sendo conquistado pela indústria rumo ao protagonismo nas relações de consumo – seja no setor de alimentos e bebidas, seja nos setores de beleza ou cuidados pessoais, por exemplo – é um caminho sem volta e que vai transformar as formas tradicionais de se fazer negócios. De um lado, teremos cada vez mais consumidores conscientes, questionadores e interessados em saber exatamente o que estão consumindo. De outro, indústrias que, para atendê-los, terão que ser cada vez mais transparentes. O que elas ganham nessa desintermediação? Um panorama completo do que o consumidor pensa, quer e valoriza. E a chance de usar isso a seu favor.
QUEBRA DE BRAÇO
Confira, a seguir, os desafios da indústria em curto, médio e longo prazos
CURTO PRAZO
A pressão de investidores tem levado líderes da indústria a empreender e a reformular o seu portfólio de produtos. Além disso, as companhias estão se desfazendo ou reduzindo unidades de negócios menos produtivas
MÉDIO PRAZO
É preciso ficar de olho nas startups e nos gargalos da indústria. Um exemplo é a Halo Top e o seu sorvete com menos de 400 calorias por litro. No ano passado, a empresa vendeu 50 milhões de litros, desbancando gigantes como Haagen-Dazs, da General Mills, e Ben & Jerry’s, da Unilever
LONGO PRAZO
Empresas de tecnologia representam uma ameaça. Elas controlam os pontos de venda on e off-line, interceptam e analisam dados. Em longo prazo, a Amazon poderá monopolizar o big data do consumidor, inclusive aquele que pertence à indústria

John G. Maxwell, líder global do mercado de consumo da consultoria PwC
O SEGREDO DA AMAZON: O CYBER CAPITAL
Um dos desafios da indústria – e de qualquer outro setor tradicional da economia – é o avanço das empresas digitais. Em entrevista à Consumidor Moderno, John G. Maxwell, líder global do mercado de consumo da consultoria PwC, falou de um dos grandes sucessos de empresas como a Amazon: o cyber capital. Confira:
O QUE MUDOU NA RELAÇÃO DE CONSUMO?
Atualmente, temos os consumidores tradicionais, que trabalham muito, têm um bom nível social e representam um ativo garantido para uma empresa. Por outro lado, há os selecionadores. Eles são pessoas fechadas, mais focadas e que não ligam para as marcas. O que importa é a experiência que elas lhes oferecem. Hoje, o importante não é conquistar os selecionadores, mas sim estar no meio. Os dois são importantes.
MAS QUEM LEVA MAIS VANTAGEM: O NEGÓCIO TRADICIONAL OU O DO NOVO ENTRANTE?
Hoje, os novos entrantes estão cada vez mais próximos do consumidor final, colhendo e analisando informações sobre os novos e os antigos consumidores. Isso lhes confere uma vantagem competitiva, pois a partir do big data eles podem criar novas ideias.
MAS QUAL É A VANTAGEM COMPETITIVA DESSAS EMPRESAS?
Essas empresas possuem o que chamamos de cyber capital, uma espécie de orçamento fundamentalmente digital. Negócios tradicionais têm um orçamento baseado em um modelo antigo: eles têm áreas de recursos humanos, pessoas exercendo a função administrativa e apenas uma pequena porção de budget para a transformação digital. Empresa digitais têm uma estrutura diferente e, mais do que isso, um valor maior de cyber capital.