HÁ 30 ANOS entrou em vigor no Brasil o que se tornaria um marco do direito privado no País, reconhecida hoje como uma lei “que pegou” e que revolucionou as relações de consumo. O Código de Defesa do Consumidor (CDC), porém, talvez tivesse tido outro destino, não fosse a conjuntura do momento em que foi aprovado. Hoje, após superar a fase de questionamentos, e conhecer a glória dos anos seguintes, enfrenta questionamentos sobre a necessidade – ou não – de ser reformado. Um debate profundo, que reúne grandes especialistas do Direito, empresas e poder público, e envolve as nuances atuais das relações de consumo. Muitos desses nomes estarão reunidos no início de agosto, durante o maior evento do setor, A Era do Diálogo, que deve trazer uma mostra da importância desse debate.
Em 1989, ano da aprovação do CDC (Lei 8.078/90), as atenções dos brasileiros estavam voltadas para o momento político-econômico turbulento. Era o ano da primeira eleição direta para presidente da República após a redemocratização. Depois, quando da entrada em vigor do Código, em março de 1990, o País passava pelos primeiros meses do governo do ex-presidente Fernando Collor de Mello e o plano da ex-ministra da Fazenda Zélia Cardoso de Melo de confisco das poupanças para conter a inflação galopante e a abertura brusca de alguns setores econômicos.
“O Código só se concretizou porque ninguém estava atento, caso contrário, certamente, enfrentaria muitas resistências. Ele acabou sendo aprovado de forma despercebida e se tornou a lei que mais deu certo no País”, explica Roberto Meir, especialista internacional em relações de consumo e publisher da Revista Consumidor Moderno. Até então, as relações de consumo no Brasil eram tratadas de forma marginal pelo Código Civil em vigor na época, que era de 1916. Naquele momento, “ninguém questionava a necessidade de uma legislação forte para proteger o consumidor”, lembra o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Herman Benjamin, que participou da elaboração do CDC.
Mais do que isso, a possibilidade de uma lei específica era vista com desconfiança. “O texto foi consequência do trabalho de um grupo de juristas liderado pela professora Ada Pellegrini Grinover, profissional de grande liderança e credibilidade, o que ajudou a aprovação no Congresso à época. Eu diria que sem a professora Ada essa legislação não existiria”, revela Benjamin, que atuou ao lado da professora. “Naquele momento, ainda havia uma má compreensão acerca do conteúdo do Código”, complementa.
O que viria depois foi uma profunda transformação no mercado brasileiro, inicialmente muito rejeitada por vários setores sociais. “À época de sua criação, o Código chegou a ser chamado de terrorismo jurídico. Dez anos depois, porém, foi saudado como a lei que deu certo. Hoje, em qualquer tipo de estabelecimento comercial, é obrigatório haver um exemplar disponível aos consumidores para consulta”, acrescenta Meir.
Entraram na pauta questões como propagandas enganosas e abusivas, que passaram a ser proibidas, assim como a venda casada (que atrela a comercialização de um produto a outro). Além disso, os consumidores passaram a ter o direito de trocar mercadorias com defeito em até 30 dias depois da compra. “É mais do que uma lei. O CDC introduz uma nova cultura de consumo com padrões de qualidade, eficiência e respeito ao consumidor”, reitera Bruno Miragem, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Muito além disso, a revolução trazida pelo Código mexeu com a economia de mercado como um todo, levou à necessidade de criação de novos serviços e produtos, gerou emprego, renda, novas empresas. Vieram os SACs (Serviços de Atendimento ao Consumidor), os call centers, os múltiplos canais de atendimento e as tecnologias para tornar esses serviços mais eficientes.
Mas se hoje as contribuições do CDC para a evolução do mercado nas últimas três décadas no Brasil são inquestionáveis, novos desafios se apresentam. Hábitos e comportamentos mudaram, surgiram outros modelos de negócio e de venda, a revolução tecnológica transformou realidades e entraram em pauta debates importantes sobre privacidade e segurança. Tudo isso, potencializado pelo isolamento social, passou a exigir da sociedade um outro olhar sobre as relações de consumo.
“Uma das questões que merece atenção está relacionada à própria percepção do consumidor perante os serviços e produtos que rotineiramente consumia. Quando ele vive uma experiência de maior permanência em casa, há muitas reflexões sobre suas reais necessidades”, explica o advogado Ricardo Morishita, diretor de Pesquisas e Projetos no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e especialista nas relações de consumo, que foi, também, diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor em Brasília (DPDC) quando elaborou o Decreto 6.523, conhecido como Lei dos SACs.
Entre os novos temas que entrariam no debate estão comércio eletrônico, questões de saúde, endividamento, privacidade e segurança, autorregulação e agências reguladoras. A discussão mais profunda, no entanto, é se essas abordagens deveriam ser tratadas no âmbito de uma reforma do CDC ou se por regramentos complementares, quando necessário.
Segundo Sophia Vial, ex-presidente da Associação Brasileira de Procons (Procons Brasil), o CDC é um código principiológico, aberto e vivo, e que, portanto, dificilmente fica desatualizado. Ela, assim como uma boa parte dos especialistas, defende complementos. Eles entrariam, por exemplo, em casos relacionados ao comércio eletrônico.
Como não havia um tratamento específico para o segmento de empresas que atuam no comércio eletrônico até então, “os operadores de Direito tiveram de usar as normas do Código, que trata sobre vendas a distância, para enfrentar os abusos do segmento. Entretanto, trata-se da entrega por correio e dos catálogos, sem relação alguma com a internet”, explica o ministro Herman Benjamin. O fato de não existir uma lei para regular e cuidar do setor gera um exército de consumidores insatisfeitos. Não à toa, os números de reclamações relacionadas às compras on-line cresceram 41% em maio, de acordo com o Procon – SP.
Uma alternativa para o setor poderia vir da autorregulamentação, mas ela denota o convencimento das partes para a sua aplicação. “O comércio eletrônico é mais avesso à regulação principalmente pela sua própria natureza e pelo poder que tem perante os consumidores. Portanto, a ideia é justamente o maior alinhamento do CDC com o que já acontece internacionalmente, que é a defesa do direito do consumidor no meio eletrônico. Se houver muita resistência a segui-lo, sairemos, então, de um plano de autorregulação para a regulação”, alerta o secretário da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), Luciano Benetti Timm.
De acordo com os especialistas, outro tema que não foi tratado de forma devida, até o momento, é o superendividamento. “Em 1990, o endividamento existia, mas não era um problema de massa, porque o cartão de crédito (que é um dos principais alavancadores de dívidas) era um benefício da elite, ou seja, poucas pessoas tinham”, lembra o ministro Benjamin. Porém, a realidade das finanças pessoais dos brasileiros mudou drasticamente.
Entre as iniciativas para aliviar o bolso de quem está mergulhado em dívidas está o Projeto de Lei 3.515/2015. O PL, que trata sobre o superendividamento, ficou três anos parado, mas foi aprovado recentemente pelo Senado Federal e aguarda chancela da Câmara dos Deputados. Dentre as ações previstas no documento está o fato de que o endividado poderá negociar, por exemplo, de forma simultânea com todos os seus credores, sem perder a capacidade de consumo.
Os especialistas o comparam a uma recuperação judicial para pessoas físicas. “Há mais de 150 anos o Brasil tem leis para recuperar uma empresa que está com problemas financeiros. Por outro lado, a pessoa física que se endivida é colocada fora do sistema financeiro e não consegue mais voltar”, explica Marcelo Sodré, advogado e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) em São Paulo, que também atuou como diretor do Procon entre 1988 e 1994.
A necessidade de haver uma lei como essa se torna ainda mais latente em um momento no qual muita gente ficou sem rendimentos. “Diferentemente de 2008, que foi uma crise bancária, agora estamos vivendo uma crise de saúde, e os bancos foram a público para auxiliar consumidores e empresas, mesmo com o aumento do risco de inadimplência”, lembra Amaury Oliva, diretor de Sustentabilidade, Cidadania Financeira, Relações com o Consumidor e Autorregulação da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban). De acordo com a Associação, o setor já renegociou 9,7 milhões de contratos, equivalente a um saldo devedor total de R$ 550,1 bilhões.
O segmento enfrentou diversas transformações ao longo desses 30 anos. Amaury Oliva, diretor de Sustentabilidade, Cidadania Financeira, Relações com o Consumidor e Autorregulação da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), destaca que as três principais estiveram relacionadas às perspectivas sobre produtos (o consumidor passa a escolher o que quer consumir); relacionamento com o cliente (ampliação de canais, além dos tradicionais telefone e e‑mail); e o diálogo com o CDC. Ele lembra que o setor – que é o segundo mais reclamado, de acordo com dados da Senacon – encabeçou algumas iniciativas para melhorar a relação com o consumidor. “Existia uma indecisão muito grande se o Código se aplicava ou não ao setor Financeiro, mas caminhamos do conflito para o diálogo.”
Foram assumidos compromissos públicos para reduzir reclamações nos órgãos de defesa do consumidor e, em 2008, foi criado um código de autorregulação bancária, que traz 21 normativos e 14 tratam sobre o tema de consumo. “Hoje, de cada cem atendimentos feitos por meios de SACs e Ouvidorias, somente de um a dois casos, em média, chegam aos órgãos externos ou à justiça, o que reflete o empenho do setor”, diz.
“O segmento Financeiro tem registrado reduções importantes nos volumes de reclamações perante os Procons e é um dos setores com maior resolutividade de forma consensual dessas demandas. Isso demonstra que a relação vem evoluindo e as Instituições Financeiras estão utilizando os aprendizados com as reclamações para melhorar os seus serviços e o atendimento”, afirma Rogério Taltassori, ouvidor do Itaú Unibanco.
Durante esses anos, os bancos também se tornaram tradicionalmente conhecidos pela supremacia do uso de canais digitais. O último relatório de tecnologia bancário da Federação mostrou que, de cada dez transações feitas, seis ocorrem por meio dos canais digitais. Tanto o Itaú quanto o Bradesco têm investido pesado na tecnologia. No Bradesco, por exemplo, 94% das transações já são feitas por meio de canais on-line. A empresa acelerou iniciativas tecnológicas, como é o caso da implementação do WhatsApp, para que os clientes possam se comunicar por meio da ferramenta. “O cliente pode falar com o seu próprio gerente, com quem já tinha uma relação de confiança estabelecida. Além de ser mais ágil, ele evita a locomoção até uma agência”, explica Glaucimar Peticov, diretora-executiva do banco.







Quase dez anos após a criação do Código de Defesa do Consumidor, em 1998, o setor de Telecomunicações foi privatizado. As empresas precisaram, portanto, se adequar às normas já vigentes e a lidar com um consumidor bem mais consciente sobre os seus direitos. Porém, com o crescimento da demanda de serviços de internet e TV a Cabo, o setor se tonou o mais reclamado nos órgãos de defesa do consumidor, com 36,9% das demandas, em 2019, de acordo com a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon).
“Cada vez mais, os serviços de telecomunicações são essenciais para tudo o que fazemos. Ao ter essa dependência, cria-se a necessidade de tê-los disponíveis o tempo todo. Porém, o setor está sujeito a uma série de problemas, desde queda de árvores à variação de energia, que podem interferir no fornecimento”, explica Celso Tonet, diretor de Atendimento a Clientes da Claro.
Mas há conflitos previsíveis e que são de inteira responsabilidade das organizações. Para isso, Tonet explica que a Claro, especificamente, tem mirado em três pilares, baseados no CDC, para melhorar a satisfação do cliente: qualidade do serviço prestado (com infraestrutura mais robusta e cumprimentos de prazos para o caso de reparos); transparência sobre o funcionamento de planos e ofertas (com clareza sobre as condições comerciais, como preços e carências) e prontidão nos serviços de atendimento (o que inclui respostas mais ágeis às demandas dos consumidores).
De acordo com o executivo, seguir essas premissas tem ajudado a organização a conquistar melhores indicadores. A empresa, que há três era líder de reclamações dos Procons, ocupa hoje o quarto lugar.
Um segmento que foi altamente influenciado pela privatização das teles foi o de contact center. As empresas surgiram para prestar o atendimento aos clientes do segmento – que aumentavam significativamente.
Desde então, essas companhias passaram pelas mais diversas adaptações. Além do CDC, em 2008 foi criada a Lei do SAC, que impõe algumas regras para o segmento, dentre elas a obrigatoriedade de resolver as demandas do consumidor em cinco dias úteis a contar da data do primeiro registro. Além disso, entrará em vigor a Lei Geral de Proteção de Dados, a qual define, entre outros pontos, que, ao coletar dados de um consumidor, como endereço, e‑mail e CFP, as empresas informem a ele a finalidade do uso dessas informações.
“O CDC foi o impulsionador para que as empresas passassem a cuidar do consumidor de forma mais inteligente. E, ao longo dos anos, entenderam que o cumprimento das regras não precisa ser algo determinado, porque, quem não cuida do cliente, vai perdê-lo para a concorrência”, explica Jackson Almeida, diretor de Negócios da AeC, primeira empresa do setor a abrir escritórios em regiões interioranas do Brasil, como é o caso de Montes Claros, Minas Gerais, criando empregos e impulsionando o comércio local.
Outra que vivenciou as mais diversas transformações do setor foi a Plusoft, a primeira a trazer o CRM para o Brasil. Guilherme Porto, CEO da Pluris Mídia e presidente do Conselho Administrativo da Plusoft, que passou por todos os meios de comunicação – de cartas aos chatbots – fala sobre como o avanço dos canais empoderou o consumidor, já que é possível fazer quase tudo sem passar pelo atendimento humano. “Quando as empresas disponibilizam tecnologias de autosserviço, elas dão liberdade para o consumidor contatá-las 24 horas por dia, tornando o processo mais fácil”, diz.
A gigante Atento, que tem hoje mais de 70 mil funcionários só no País, é mais um exemplo de quem viu a tecnologia se tornar pilar essencial para que as empresas pudessem aperfeiçoar o atendimento. “A tecnologia é habilitadora de melhorias de processos por permitir a criação de múltiplos canais e facilitar o atendimento ao cliente”, afirma Luiz Antonio Costeira Urquiza, vice-presidente de Operações Multissetor da Atento no Brasil.

Muito se pergunta sobre a interferência do Estado, principalmente em um momento de crise em que o poder público precisa socorrer consumidores e empresas, seja com crédito, seja com auxílio emergencial. “Algumas medidas do governo deram certa elasticidade para as relações contratuais; as próprias empresas de energia estão postergando dívidas e deixaram de cortar o serviço de pessoas inadimplentes”, explica o professor José Geraldo Brito Filomeno, consultor jurídico especialista em direito do consumidor do Bonilha, Ratto e Teixeira Advogados. Em junho, por exemplo, seguiu para sanção do presidente Jair Bolsonaro o Projeto de Lei 675/2020 que proíbe a inscrição de consumidores inadimplentes em cadastros negativos durante o estado de calamidade devido à pandemia do coronavírus.
Os especialistas lembram a importância dessa dose certa de interação entre público e privado, em casos como, por exemplo, o do preço abusivo que alguns estabelecimentos cobraram na venda do álcool em gel no início da pandemia. Embora a Senacon tenha monitorado e punido os excessos, o Estado interveio pouco, e os preços se ajustaram de acordo com o mercado. “Não tabelamos os preços porque poderia gerar uma falta de produtos. O que aconteceu foi que mais empresas e pessoas passaram a produzir álcool em gel e máscaras de forma artesanal e os preços se ajustaram. Hoje, não há mais reclamações relacionadas a esses produtos”, afirma o secretário da Senacon, Luciano Timm.
Para melhorar as relações, em 2014, o governo criou o Consumidor.gov, canal para que consumidores negociem diretamente com empresas cadastradas na plataforma, mesmo que já tenham ingressado com uma ação no Poder Judiciário. Se houver acordo entre as partes, o processo será homologado pelo magistrado dentro do Processo Judicial. Segundo a Senacon, até o momento existem 832 empresas cadastradas e 2.106.491 usuários. A ferramenta foi eleita pela UNESCO como a mais democrática para a resolução de conflitos do consumidor e tem apresentado os maiores indicadores de resolutividade nas demandas do consumidor, principalmente no setor de Telecomunicações, com indicadores superiores a 80%.



Código de Defesa do Consumidor – 1990
Estabelece normas para a proteção do direito ao consumidor.

Lei do SAC – 2008
Impõe regras para as Centrais de Atendimento: dentre elas, a obrigatoriedade de resolver demandas do consumidor em cinco dias úteis a contar da data do primeiro registro.

Marco Civil da Internet – 2014
Regula o uso da internet no Brasil e garante a privacidade e proteção de dados pessoais.

Criação da Consumidor.gov – 2014
Plataforma do governo para negociação de conflitos entre consumidores e empresas.

Lei Geral de Proteção de Dados – 2020
Define, entre outros pontos, que, ao coletar dados de um consumidor, como endereço, e‑mail e CFP, as empresas informem a ele a finalidade do uso dessas informações.

SEM CRÉDITO NO BANCO
Em abril de 2020, o total de consumidores negativados chegou a 62,83 milhões, o equivalente a 40% da população adulta do País.

Em 2019, as empresas de telecomunicações foram as mais reclamadas, seguidas dos bancos e do comércio eletrônico, segundo a Senacon:
Telecomunicações — 36,9%
Bancos, financeiras e administradoras de cartões — 24,3%
Comércio eletrônico — 8,2%
Bancos de dados e cadastro de consumidores — 6,5%
Transporte aéreo — 6,1%
Energia elétrica — 1,5%
Planos de saúde e administradoras de benefícios — 0,6%
Fonte: Senacon
Cartão de crédito/Cartão de débito/Cartão de loja — 9,1%
Banco de dados e cadastros de consumidores (SPC, Serasa e SCPC) — 8,5%
Telefonia móvel pós-paga — 8,5%
Pacote de serviços (combo) — 6,8%
Transporte aéreo — 5,9%
Fonte: Senacon